No coração da antiga Carpetânia, uma nova análise do sítio arqueológico de El Cerrón, em Illescas (Toledo), abalou as ideias preconcebidas sobre o papel das suas elites. Até agora, acreditava-se que as classes dominantes desta região eram marginais no tecido sociopolítico do interior da península. No entanto, uma equipa de arqueólogos revisitou em profundidade os materiais e questionou esta narrativa. O resultado do estudo, publicado na revista Antiquity, fornece evidências convincentes de que a elite local carpetana não só tinha peso, mas estava plenamente integrada nas dinâmicas de poder da época, que conduziram à «mediterraneização», uma era de globalização; uma revelação que obriga a olhar com outros olhos o mapa do poder na Hispânia pré-romana.
As elites já dominavam os códigos do poder mediterrâneo
A antiga Carpetânia era uma região do centro da Península Ibérica situada numa pequena colina no vale do Tejo, numa zona que outrora era considerada política e culturalmente fraca. Mas um impressionante relevo em terracota descoberto na Estrutura 2 do sítio arqueológico, que foi interpretado pelos arqueólogos como um santuário, muda tudo. O relevo decorado em terracota é um achado totalmente incomum para estar tão longe da costa mediterrânea.
O relevo representa uma procissão de carros liderados por um grifo com uma flor de lótus no bico (uma criatura mitológica muito rara na Península Ibérica), aurigas em carros puxados por cavalos e uma figura humana segurando o que parece ser um bastão de comando ou uma lança. A cena pode representar uma cerimónia religiosa ou uma exibição de poder da elite.
Esta iconografia é típica da arte mediterrânica, podendo também ser encontrada no norte de Itália, bastante longe do interior de El Cerrón, que fica a mais de 300 quilómetros do mar. Com isto, a investigação indica que a zona estava profundamente ligada ao comércio e ao intercâmbio cultural mediterrânicos.
Um relevo muito revelador
Este relevo de terracota de 1,35 metros de comprimento, que faz parte de uma composição maior (e provavelmente integrado num altar de adobe) que data do século IV a.C., demonstra uma estética mediterrânica entre a elite carpetana deste período. Pela sua localização no que poderia ter sido uma residência aristocrática ou mesmo um espaço sagrado, e pelo simples facto de ter conservado um relevo com tais características, os arqueólogos apontam para uma conclusão fascinante: as elites deste enclave carpetano mantinham ligações diretas com os circuitos comerciais do Mediterrâneo. Uma pista silenciosa, esculpida em pedra, que revela uma rede de contactos muito mais ampla e influente do que se pensava para esta comunidade do interior da península. Carpetânia influenciou ativamente o desenvolvimento dos mercados mediterrânicos, apontam os especialistas.
A localização cuidadosamente escolhida dos santuários, juntamente com a presença de símbolos de clara influência mediterrânica em contextos rituais, revela algo mais do que espiritualidade: uma estratégia política de alto nível. Estes elementos culturais não serviam apenas como expressão religiosa, mas também como instrumentos de poder, utilizados pelas elites para legitimar o seu estatuto e tecer alianças num mundo cada vez mais conectado. Assim sendo, a elite carpetana, longe de ser um lugar dócil, parece ter participado ativamente na fase de formação da cultura mediterrânica:
«As nossas descobertas revelam a necessidade imperiosa de questionar os antigos pressupostos e enfrentar os preconceitos que moldaram os estudos sobre as interações mediterrânicas, especialmente no que diz respeito aos distritos tradicionalmente considerados marginais», concluem os investigadores.